segunda-feira, 25 de novembro de 2013

As duas mortes de Jango

Talvez ninguém na política brasileira tenha sido alvo de violência tão grande. Para os militares, não bastava tirá-lo do poder. Era preciso criar a imagem de líder fraco






Difícil é explicar o motivo de termos demorado tanto tempo para admitir a plausibilidade de que ex-presidentes como João Goulart e Juscelino Kubitschek tenham sido assassinados


Foram duas as vezes que João Goulart morreu. Uma foi a morte física que, tudo indica, resulta de mais um assassinato perpetrado pela Operação Condor. Talvez nunca consigamos as provas definitivas de tal assassinato, mas sabemos muito a respeito da história das ditaduras latino-americanas para não levarmos a sério essa possibilidade. Matar ex-presidentes foi uma especialidade dos militares de nossa região, como mostra a morte até mesmo do democrata-cristão chileno Eduardo Frei. 

Difícil é explicar 
o motivo de termos demorado tanto tempo para admitir a plausibilidade de que ex-presidentes como João Goulart e Juscelino Kubitschek tenham sido assassinados. Durante anos, havia até mesmo declarações detalhadas de um antigo agente secreto do regime militar uruguaio, responsável pela sua morte. Mas nada disso foi realmente levado à sério.






Para além desse descaso calculado que durou praticamente 30 anos, há, entretanto, outra morte, talvez pior, à qual João Goulart foi submetido: a morte simbólica. Jango não foi simplesmente deposto, ele foi assassinado simbolicamente. Era necessário não apenas matá-lo, mas apagá-lo de nossa história, ou melhor, fazê-lo sair da história brasileira pela porta dos fundos.


A morte simbólica é essa que atinge não o corpo, mas o nome. Ela é a eliminação também da memória das ações que tal nome representou. Por isso ela é a pior morte de todas. Nesse sentido, talvez ninguém na história brasileira tenha sido objeto de violência tão grande quanto João Goulart. Pois, para os militares, não bastava alijá-lo do poder. Era necessário criar a imagem de um presidente fraco, impopular, golpista, financiado pelo “ouro de Moscou”. Era necessário apagar os rastros da impressionante intervenção norte-americana na gestão do golpe brasileiro, a fim de dar a impressão de que a “revolução redentora” fora o resultado pura e simples da responsabilidade das Forças Armadas diante do chamado feito pela população brasileira nas ruas em decorrência do medo da ameaça comunista.


Como lembrava Sigmund Freud, nunca se recalca algo completamente. Assim, neste novembro vimos o corpo de João Goulart voltar à luz. Não por acaso, ele emerge na mesma época em que começamos a descobrir (como mostrou CartaCapital há duas edições ao dar notícia de uma pesquisa Ibope realizada pouco antes do golpe de 1964) como Jango continuara um presidente popular até o último momento. Um político, indicavam os levantamentos, com uma reeleição assegurada caso lhe fosse permitido se candidatar novamente. Alguém eleito vice-presidente, apesar de integrar uma chapa derrotada na eleição anterior.


A própria esquerda brasileira colaborou para tal esquecimento. Queria ver em Goulart um líder político incapaz de expressar as reais demandas daquele tempo de transformações. Ou seja, como se fosse um presidente fraco, sendo que talvez o verdadeiro defeito de Goulart tenha sido, simplesmente, a incapacidade de imaginar o pior. Incapacidade de acreditar que a direita era capaz de dar um golpe que duraria 21 anos, animada por uma fúria de destruição sem par.

Tudo isso demonstra 
como o lugar de João Goulart na história brasileira precisa ser urgentemente revisto, assim como devemos rever esse momento fundamental da história do País. Seu programa de reformas de base foi a primeira tentativa séria, no Brasil, de usar a capacidade de planejamento do Estado para iniciar um ciclo de transformações sociais verdadeiramente estruturais. Sua forte popularidade indicava o caráter claramente minoritário dos grupos que lhe faziam oposição. Só por isso ele mereceria um lugar de destaque em nossa história.


Assim, quando seu corpo voltou a Brasília, quase 50 anos depois, para receber as honras de chefe de Estado, era como se, enfim, sua morte simbólica começasse a ser anulada. Um fato que nos obriga a parar de reescrever a nossa história ao sabor do vento. Há muito ainda a se fazer no futuro do Brasil, mas muito há também a se fazer em seu passado. Por exemplo, é preciso parar de matar nossos mortos duas vezes.


Carta Capital/ Rayssa Aline

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